domingo, 21 de agosto de 2016

E quando o lobo mau torna-se real?

Lidando com a exposição de uma criança pequena a violência.

Em março deste ano eu e Marina passamos por um evento bem violento, tanto que só agora que eu me sinto preparada para falar disso aqui. Sofremos um assalto com sequestro relâmpago, em que um assaltante entrou no banco de trás do carro e ficou por longas três horas ao lado de minha filha e comigo dirigindo pela cidade.

Esse evento nos trouxe, além de todos os problemas óbvios, uma questão bem delicada que é a exposição do mal para uma criança pequena (tinha três anos e nove meses) e que até então vivia sob a sagrada proteção minha e de seu pai, sem acesso a violência, sem acesso a TV aberta, sem gritos e sem palmadas.

No entanto, esse fator eu não pude controlar, infelizmente ela teve contato com uma situação violenta e vivenciou o mal. Eu filtrei como pude, tentei me manter calma durante o assalto, mas como criança sensível e pensante que é percebeu, ao seu modo, que aquilo era uma coisa ruim e que aquele moço era "malvado" (Palavras dela).

Assim, mesmo que prematuramente (ao meu ver) tivemos que trabalhar estas questões aqui em casa, de cara além de muito carinho e muito amor eu tive o cuidado de ir nomeando para ela tudo o que ela estava sentindo, dando voz ao seu discurso infantil, mas de forma muito leve.

A primeira coisa que fizemos foi retomar nossa rotina de vida, sem ficar falando ou expondo a situação na frente dela, isso foi importante demais. Crianças precisam de rotina, sentem-se seguras com ela, por isso seguir rotinas e pequenos rituais (hora de banho, refeições, escutar historias e etc). Além disso eu procurei fazer com que brincasse com outras crianças, dei muito colo, desenhei, cantei fiz bolo... todas atividades que ela gosta demais. Foi terapêutico para mim também. Não foi fácil, não foi perfeito, chorei escondido, fiquei sem dormir, mas tive o apoio de meu companheiro e pai de Marina que segurou a onda no período mais critico assumindo exclusivamente os cuidados com ela para que eu me restabelecesse sempre que foi necessário.

Tão fundamental quanto a rotina foi não deixar o ambiente pesado, então não falar sobre o episódio vivido na frente dela, e óbvio não deixar o tema ficar vindo a tona em filmes, musicas, episódios violentos, coisa que a gente já fazia, nunca expusemos ela a esse tipo de mídia.

Mas como não dá para fingir que nada aconteceu, a segunda coisa que fizemos foi nos manter  receptivos a ouvi-lá sempre que ela precisasse falar sempre que ela tocava no assunto, assim ela sabia que seria ouvida, que poderia contar o que a incomodava. Geralmente sempre que ela iniciava uma fala parávamos, escutávamos atentamente, caso ela perguntasse algo (e fez isso muitas vezes) a gente tentava responder de forma simples mas também verdadeira, só depois disso, de dar uma resposta é que nós tirávamos o foco dela e apresentávamos uma brincadeira ou outra atividade. Assim, aos poucos, fomos nomeando o que ela estava sentindo para que ela pudesse "digerir" o ocorrido, por exemplo, ela me perguntou: "mamãe, aquele moço é malvado? Assim como o lobo mau? Eu respondi que sim, que existiam algumas pessoas que podiam ser más ou fazer coisas más as vezes, mas que a  maioria das pessoas não era assim, daí citei as pessoas boas com que ela convivia.


Logo depois, ela começou a perguntar sobre as coisas dela (objetos de estimação que foram roubados junto com tudo), porque ele fez isso? Onde estão as coisas? Elas estão bem (porque ela trata alguns objetos como seres, então a bolsa preferida, a sandália de solzinho... eles estariam bem? Isso realmente a preocupava). Foi nesse momento (acho que 15 dias depois) que entrou em cena a psicologa que acompanha Marina até hoje, e por orientação dela tratamos de encontrar um desfecho para as coisas dela, isso para encerrar o ciclo. Então ficou claro que aqueles objetos não voltariam mais. No inicio tive dificuldade de fazer isso porque ficava com pena de dizer que a bolsa que ela tanto gostava não ia mais voltar, que podia ter ido para o lixo ou estragado, ou estar com outra criança que achou... achei que ela ia sofrer muito, mas na verdade dar um desfecho foi ótimo, porque ela sossegou. Eu preferi dizer que o "moço"tinha jogado fora e que achava que uma menininha tinha achado, e ela aceitou bem, perguntou se a menina ia devolver, eu disse que não porque ela nem sabia onde a gente morava mas ela tava cuidando bem das coisas dela e ela aceitou.

Continuamos a ouvir, sempre, na verdade ela passou a falar mais do ocorrido, mas segundo a psicologa isso era comum e esperado, na verdade era saudável que ela falasse, e como é bem pequena tem a necessidade de consolidar essas informações por meio da repetição, então repete a mesma pergunta muitas e muitas vezes.

Acho que 2 meses após o assalto foi o auge, ela falava, perguntava, se lamentava, depois disso foi diminuindo, e hoje em dia ela tem plena consciência de que uma coisa ruim aconteceu, que as coisas dela não vão mais voltar, e que isso não é justo, Mas ela também tem muita certeza do nosso amor, continua se sentindo segura ao nosso lado, continua alegre, inventiva, brincalhona... mas agora sabe que pessoas más existem.

Esse saber da maldade é que me assustava, eu tinha medo dela perder a fé nas pessoas, o brilho no olho, a fantasia que é ser criança... acho que com muito cuidado conseguimos evitar isso. Ela sabe que pessoas más existem mas a ideia de que o ser humano é essencialmente bom ainda tá aqui. Além disso não queria iniciar mais um ciclo de ódio, então não ensinei a ela a odiar o assaltante, e não o desumanizei frente a ela... alias ela já fez mil teorias sobre o porque ele agia assim, porque ele foi "chatinho"(palavras dela) e eu sempre a ajudei nessas reflexões.

Obvio que não romantizei a maldade falando que ele precisava, que fazia isso porque era pobre ou algo do gênero, isso seria justificar a maldade, muito perigoso apresentar essa possibilidade para ela nesse momento, porque assim abriria precedente para justificar a maldade e ela não tem idade para lidar com um contexto tão complexo agora. Mas não romantizar não significa ensinar a odiar, e odiar é ruim para quem odeia também, então, mesmo diante de tanta brutalidade tentei trazer a calma para ela e para mim também.

Não sei se estou sendo clara, se estou indo e vindo no texto a todo momento, desculpem, tentei relatar a nossa experiencia por aqui, mas o assunto ainda é confuso mesmo. Mas resumindo a fórmula aqui foi: AMOR + AMOR + carinho + rotina normal + deixar o canal aberto para ela falar quando quisesse + escuta atenta + procurar nomear as coisas para ela (EX: filha você está com raiva, porque o moço levou sua bolsa preferida. Realmente é muito ruim quando perdemos as coisas que gostamos) + não ficar estimulando a assunto do assalto, não comentar na frente dela... esperar que ela fale quando quiser.

A psicologa tem sido fundamental, por orientação de uma amiga procuramos por uma que siga a linha psicanalítica, pois trabalha o problema de dentro para fora, fazendo com que Marina possa ela mesma procurar entender as coisas da forma dela, no tempo dela, esse é um contraponto importante frente a linha de terapia cognitivo comportamental que trabalha mais na modulação de comportamento, e nesse caso não seria o mais indicado.

Assim, nos últimos meses nossa vida tem voltado ao rumo, aos pucos, o assunto do assalto foi esmorecendo, e tem importância menor hoje em dia, ela tem plena consciência do que viveu mas não tem rancor, o que aconteceu não pesou mais do que precisava em sua vida e espero que continue assim. Ela sabe que ela não é coitadinha, e muito menos o assaltante o é... coisas ruins acontecem, pessoas ruins existem, mas a vida é uma dádiva, deve ser vivida com alegria e gratidão então sigamos em frente.


Por fim quero agradecer aos meus amigos Samia, Camila e Luciano que nos acudiram no dia, principalmente Samia que soube conduzir com leveza nossa volta para casa e ainda me deu muito apoio na delegacia. Cicera, outra querida que me ajudou a me encontrar, me deu dicas valiosíssimas \nos primeiros dias com Marina e ainda me indicou a psicologa. A solidariedade de outras mães, Helvia, Lu, May que me ouviram, que marcaram uma simples brincadeira entre nossos filhos, As irmãs escolhidas, Bel e Débora pelo ombro sempre disponível. As professoras do jardim Semear que tiveram sensibilidade e deixaram as coisas fluírem com leveza e sensibilidade. Sou grata, muito grata.